Rotas da Seda

Um relato pessoal sobre o desenvolvimento de uma pesquisa e produção artística

Vanessa Rosa
8 min readDec 6, 2019

Azulejos…

No centro do Rio de Janeiro há azulejos azuis e brancos, que chamávamos de azulejos portugueses. Por muito tempo, eu pensava que todos os azulejos deveriam ser azuis e brancos, ou pelo menos ter um pouco de azul, porque afinal azulejo tem azul em seu nome. Como muitos outros de meus conterrâneos, eu achava a maior parte da arquitetura popular das últimas décadas terrivelmente mais feia do que a arquitetura antiga, daí os azulejos representavam uma certa nostalgia.

Convento e Igreja Nossa Senhora do Carmo da Lapa do Desterro, Rio de Janeiro

Pintar na rua no Rio de Janeiro, e em boa parte da América Latina, tem algo de muito livre. Pode ser extremamente perigoso, afinal o espaço público muitas vezes tem a sensação de terra de ninguém, mas a maior parte das vezes, se falar com jeitinho e conhecer as pessoas que moram no entorno, pintar na rua significa passar longas horas durante o dia trabalhando na frente de um pequeno público de transeuntes, com direito a cafezinho servido pelo morador da esquina e provavelmente alguma conversa gostosa. Alguém vai parar para contar sobre sua própria vida enquanto te observa pintar. Encontros improváveis acontecem e há um belo potencial de descobertas dos tais outros mundos da cidade, se a gente estiver aberto a ouvir.

Certa vez, lá por 2011, vi uma artista decorando o fundo de seu mural com um pequeno estêncil que imitava um azulejo e comecei a imaginar pinturas feitas de estêncil tipo azulejos, mas distorcidos, com volume, porque nunca gostei de formas chapadas. Minhas pinturas sempre usaram uma técnica meio aguada, ou borrifado, gosto de formas se dissolvendo, uma realidade um tanto quanto fantasmagórica, dinâmica, aquilo que esconde outra coisa, que poderia ser outra coisa. Queria criar espaços falsos, simplesmente porque eu sempre amei desenhos de perspectiva, história, e achava que os azulejos eram um belo elemento da cidade, algo que poderia ser reinterpretado na tal arquitetura contemporânea genérica e sem graça, ou nos paredões sujos. Mas eu nunca tive paciência de cortar estêncils e para o nível de detalhe que eu queria, fazer a mão seria loucura.

Descobri a técnica do corte a laser em 2013 em Berlim, mas apenas comecei a usá-la em 2015, em Nova York e Lisboa. Desde que eu entendi que poderia não só trabalhar remotamente mas também buscar projetos em qualquer lugar do globo, eu tive muita dificuldade em manter um relacionamento monogâmico com uma cidade. Tenho vivido pulando entre residências artísticas e outros projetos alternativos, fui muitas vezes para os EUA e Europa, mas também no Acre, no Chile, no Benin, na Tailândia, na China, sempre a partir de uma rede de artistas, pensadores e organizações que se interessaram pelo meu trabalho, ou daqueles quem eu admirava e tomei a iniciativa de me apresentar. Às vezes tenho um quarto só para mim que subloco temporariamente, às vezes a residência artística provê tudo, às vezes vivo de favor na casa dos amigos. Amo o Rio mas não sou fiel, ainda que não consiga ficar longe por um ano inteiro. Eu sempre volto. Espero.

Parte do trabalho que cerca o espaço cultural Pioneer Works, em NYC. Julho de 2017

As pessoas em Nova York olhavam minhas pinturas de azulejos e me perguntavam sobre arte mourisca, sobre Marrocos, se eu era muçulmana. E isso fazia bastante sentido, porque Portugal nunca deixou de ser meio mouro. Pesquisando a história do azulejo, descobrimos que o rei D. Manuel I se apaixonou pelas cerâmicas e decorações de interiores da Espanha Islâmica ainda no final do século XV, então decidiu fazer algo parecido em seu palácio de Sintra. Portugal antigo tem uma enorme afinidade estética com o mundo Islâmico. Diz-se que a palavra azulejo, tem origem no árabe azzelij (ou al zuleycha, al zuléija, al zulaiju, al zulaco) e significaria pequena pedra polida.

Já o azul e branco vem de uma influência chinesa e sequer foram os Portugueses os primeiros a conseguir dominar esta técnica de cerâmica na Europa, mas sim os Alemães e depois os Holandeses. A China importava o óxido de cobalto da Pérsia, um pigmento conhecido desde a Antiguidade, que tinha resultados muito mais precisos e de cor intensa sobre a cerâmica do que os demais materiais. Eu gosto sempre de pensar na evolução da técnica de se fazer as coisas, muitas vezes o simbolismo é criado sobre limitações materiais, não necessariamente era o amor ao azul que disseminou este tipo de produção, pelo menos em seu princípio. Da China, o gosto por porcelanas azuis e brancas se espalhou por toda a Ásia, ou talvez nem tenha realmente começado com a China, são tantos grupos diferentes produzindo que as vezes se torna difícil saber quem é quem, quem começou o quê.

Porcelana chinesa à esquerda, porcelana turca a direita.
Detalhe de um trabalho da série Rotas da Seda : à esquerda, padrão encontrado em São Paulo transformado para incorporar o símbolo Funtunfunefu, ao centro um padrão chinês, à direita padrão inspirado em arte geométrica islâmica.

O símbolo mais potente que já vi sobre humanidade, sobre a relação entre grupos é o pictograma Adinkra (parte da cultura Ashanti da atual Gana) chamado Funtunfunefu Denkyemfunefu. São dois crocodilos siameses que compartilham o mesmo estômago e ainda assim lutam por comida. Um símbolo sobre as dificuldades da democracia ou a necessidade de união além de nossas muitas fronteiras. Não são relações simples, estas trocas. Não são pacíficas. Falar de história mundial é lidar com esta rede, dominação, reinvenção, apropriação, destruição, resistência, combinação, influência, criação. E lidar com nossa posição pessoal no meio disso tudo. Nossas inúmeras contradições internas. O que não falta são dúvidas, é importante aprender a respirar.

Futunfunefu Denkyemfunefu, símbolo da democracia e da unidade. Ele retrata dois crocodilos siameses que compartilham um estômago, mas lutam entre si por comida.

As minhas pinturas de azulejos se transformaram nesta série de trabalho que eu intitulo “Rotas da Seda”, como o livro do historiador Peter Frankopan sobre história mundial com foco na Ásia Central. Na primeira pintura da série, fiz uma homenagem a Dra Nise da Silveira, porque a organização que me convidou para a pintar um hospital psiquiátrico em Lisboa, a Galeria de Arte Urbana, pediu que houvesse um rosto na composição e a Nise (grande médica brasileira que bem desenvolveu a arte terapia, lutou pelo reconhecimento do valor artístico da produção de pessoas em estado de esquizofrenia) me pareceu claramente a melhor opção. De volta ao Rio, tentei misturar os azulejos com minhas pinturas sobre o cotidiano da cidade. Em NY durante a residência AnnexB, com a islamofobia crescendo, pessoas sendo barradas de entrar nos EUA, fiz uma exposição individual em que combinei os azulejos com a arte islâmica e convidei uma amiga iraniana, Marjan Fadavi, a fazer o texto da exposição.

Depois me candidatei e consegui uma bolsa no intensivo de verão do Interactive Technology Program da NYU, um espaço referência para arte e tecnologia, e comecei a utilizar projeção mapeada sobre as pinturas, além dos estudos sobre design algorítimico e etnomatemática. Convidei o chinês Wenqi Li a desenvolver o projeto comigo, junto com a Verônica Natividade, com quem eu já conversava sobre metodologias de ensino de design algorítmico que incluíssem referencias mundiais, principalmente design fractal na Africa. O projeto para a instituição Pioneer Works foi um convite que veio inesperadamente no meio deste turbilhão, e quando vi estava pintando um trabalho gigante num centro cultural de arte contemporânea de grande relevância em NYC.

Infinity Game, feito com Wenqi Li e Veronica Natividade
Frente do mural para o espaço Pioneer Works em NYC. O trabalho se estende pela rua lateral e a de trás do centro cultural.

Também é um prazer desenvolver a própria técnica. Eu sempre amei desenhar, passei anos estudando pintura óleo, modelo vivo, depois muralismo, mas o corte a laser trouxe outras possibilidades para a pintura. Passei a fazer o design dos estêncil de modo a dar a impressão de perspectiva, mas que também fosse fácil de combinar uns com os outros de inúmeras formas, para poder enganar o olhar criando perspectivas muito mais profundas e dinâmicas do que as formas exatas dos estêncil que eu criei. Outra questão que ajuda a criar o efeito de profundidade nos trabalhos é o sombreamento, o excesso de padrões confunde o olho então a luz e sombra guiam o resto. Fico fascinada com as possibilidades do design assistido por computador, considerando que estou trabalhando com padrões, passei a me interessar pela história do design algorítmico. O que nos leva a todo um outro debate sobre etnomatemática e arte generativa, ou seja, sobre arte baseada em regras claras de composição (tais como padrões geométricos) já ser produzida por grupos culturais pelo mundo todo há milênios. Para muitos do mundo islâmico, e de certa forma também para os indígenas brasileiros Huni Kuin que conheci, as imagens figurativas são ilusivas, portanto, para representar a harmonia e beleza do divino devemos recorrer a padrões. É impressionante se dar conta da complexidade que tais artes alcançaram, por exemplo, a similaridade entre alguns padrões islâmicos e as estruturas atômicas de quase-cristais.

Sobre etnomatemática, quem tiver interesse, recomendo ler este outro texto meu.

Um dos primeiros estêncils cortados a laser que fiz

O trabalho também é muito mais pessoal. Eu já tinha em mente pintar azulejos desde 2011, mas só comecei a fazê-lo em 2015, depois que a pessoa mais importante da minha vida, minha irmã, morreu repentinamente. Ela era programadora, mas também desenhava, cantava, a gente aprendeu a pintar juntas e meu sonho de infância era desenvolver uma série de história em quadrinhos com ela. Creio que boa parte do meu interesse mais recente por novas tecnologias está relacionado à vida de Diana enquanto programadora, este mundo estranho o qual eu desdenhava e entendia quase nada. Pintar em tons de azul, pensar em passagens, portais, olhar templos do mundo todo como inspiração, isso também se tornou parte do meu processo de aceitar a nossa mortalidade, o se reestruturar quando algo tão fundamental simplesmente não está mais lá. E o trabalho também trouxe novos caminhos por si só, quando a gente pinta na rua as pinturas tomam uma vida muito além do que seria possível controlar, a maior obra que fiz desta série, no Pioneer Works, foi tomada pelas plantas do jardim. Eis que a vida renasce, irrompe no meio deste azul melancólico que pensa na história da humanidade, sorri e chora.

Para mim pensar na história, na filosofia, é o mais próximo de espiritualidade que tenho. Sobre sermos parte de um processo, história como inteligência coletiva humana. Mesmo que caótica e também até certo ponto cíclica. Sobre não criarmos sozinhos. Sermos uma continuidade uns dos outros, uma continuidade da natureza, do mundo, mesmo que criemos barreiras. Buscar entender como as coisas se constroem, entender mesmo aquele que me machuca, isso me dá um certo alívio da situação angustiante do agora (ah, as eleições! Como chegamos neste ponto?), me ajuda a ter leveza para pensar em alternativas — calma, o mundo já foi diferente e poderia mudar de novo — pensar nas trocas humanas, suas alegrias dores e violências como parte de um processo, que não consigo realmente entender, é complexo demais, mas posso pelo menos admirar e tentar contribuir criando imagens a partir do que fui capaz de ver. É uma necessidade interna, me acalma olhar com algum distanciamento, me impressionar e tentar ter alguma esperança. Espero que possa significar algo parecido para outras pessoas também. É um prazer poder se encantar pelo mundo, mesmo com suas dores, e devolver alguma coisa que acredito ter uma energia boa.

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Vanessa Rosa

va2rosa.com. I'm a weird combination of extremely rational with extremely intense/impulsive. Sometimes I manage to find balance.