Arte, Etnomatemática e Cultura Digital

Vanessa Rosa
15 min readOct 23, 2019

--

O povo cokwe, originário da atual Angola, tem uma tradição de se reunir em torno de uma fogueira ou à sombra de árvores frondosas para desfrutar de boas conversas enquanto as ilustram com desenhos na areia. Um destes contos narra o encontro entre um caçador e uma galinha selvagem; a galinha vê o homem se aproximando e começa a correr.

Na história, a ave é um símbolo de esperteza e inteligência, logo, apesar de estar consideravelmente próxima da entrada da sua casa, ela decide correr em largos ziguezagues, pois se corresse em linha reta seria apanhada ou o homem saberia a localização de seu esconderijo. No entanto, correr em ziguezague não é o suficiente, ela apenas se afastaria de casa e o caçador eventualmente entenderia sua tática, conseguindo então apanha-la. Por isso a galinha muda de direção, passa a correr em um ziguezague mais estreito, muda mais uma vez, acelerando a corrida numa linha reta. Ela chega perto de casa e constata que o caçador ainda a segue, então ela recomeça o ziguezague, de forma paralela ao primeiro momento da corrida. Mais uma vez ela muda de direção e acelera, alternando entre ziguezagues e linhas retas aceleradas, até conseguir voltar para sua casa enquanto o caçador está cansado e confuso.

Esta história é parte do livro “Da etnomatemática a arte-design e matrizes cíclicas” de Paulus Gerdes, mas também aparece em outros formatos várias outras publicações do mesmo autor. No livro citado, o pesquisador narra em primeira pessoa sua experiência em contar tal história para diversos públicos, enquanto os faz acompanhar a execução de um algoritmo geométrico que ilustra a saga da galinha. Eis a representação das corridas:

Running chicken pattern and algorithm, according to Paulus Gerdes

Muitos dos livros de Paulus Gerdes estão disponíveis gratuitamente (em mais de uma língua) no site Lulu.com

Gerdes fez parte da primeira geração da Etnomatemática, um campo de estudo iniciado pelo pesquisador brasileiro Ubiratan D’Ambrosio nos anos 70. Uma das principais influências na etnomatemática foi a Pedagogia do Oprimido, desenvolvida pelo também brasileiro Paulo Freire. Outra também importante foi a história cultural de Oswald Spengler no início do século XX. A originalidade do trabalho de Spengler veio do entendimento de que a história da ciência seria muito limitada se esta se focasse em conceitos formalmente escritos. Seu exemplo mais famoso foi a arquitetura da antiguidade, como tais construções aplicavam conceitos que foram formalizados apenas séculos depois. Gerdes fez um argumento semelhante, dedicando vários trabalhos para provar que o Teorema de Pitágoras estava implícito nas técnicas tradicionais de construção e desenho.

Paulus Gerdes foi um matemático holandês, mas passou a maior parte de sua vida em Moçambique, onde foi naturalizado. Segundo o pesquisador, a etnomatemática era uma necessidade quando o país finalmente alcançava a independência. Embora fosse uma profissão muito necessária, os estudantes tinham pouco interesse em se tornar professores de matemática, principalmente porque entendiam esse assunto como estrangeiro, parte da cultura do colonizador, mas não da sua. A etnomatemática tornou-se uma maneira de inspirar as pessoas na arte de encontrar práticas matemáticas nos mercados locais, na maneira como o comércio de rua operava, mas também nos intrincados padrões de tecelagem encontrados em cestas, desenhos tradicionais, todo tipo de objetos vistos como artesanato. No entanto, em comparação com outros pesquisadores no campo, o trabalho de Gerdes se destaca por sua busca em vincular o estudo do artesanato tradicional à ciência contemporânea.

Quando lemos seus livros sobre padrões mono lineares conhecidos como ‘sona’, que antes eram comuns em Angola, descobrimos como eles são algoritmos geométricos, como podemos ler o caminho feito pela linha como um sistema matricial. Ao final de sua explicação, ele usa a mesma lógica dos padrões tradicionais para criar matrizes circulantes e chegamos a um nível muito mais profundo de discussão matemática. Além disso, outro ponto interessante sobre os ‘sona’ é como são semelhantes a práticas tradicionais espalhadas pelo mundo, dos celtas ao antigo Egito, mas especialmente aos Kolams na Índia.

O estudo de Gerdes dos ‘sona’ como sistemas matriciais
O estudo de Gerdes dos ‘sona’ como sistemas matriciais
Criação de novos padrões usando uma lógica semelhante a dos “sona”

Outro dos melhores exemplos da pesquisa de Gerdes é sua comparação de técnicas de tecelagem, como a bola “Sepak Raga” da Malásia e as moléculas de carbono conhecidas como buckerminsterfulleres (uma homenagem ao arquiteto visionário Buckminster Fuller), que só foram estudadas formalmente na década de oitenta. Na visão do pesquisador, a semelhança não é uma coincidência, mas uma questão de design otimizado.

Moléculas de carbono buckerminsterfulleres, Sepak Raga e a técnica de tecelagem usada para fazer as Sepaks

Nos EUA, um dos principais pesquisadores em um campo semelhante é o professor da Universidade de Michigan, Ron Eglash, que passou da etnomatemática para o que ele chama de etnocomputação. Ele a desenvolve especialmente como uma abordagem pedagógica, através do uso das Ferramentas de Design Culturalmente Situadas (CSDT). Eglash já foi estudante de graduação de Donna Haraway, também estudando com Angela Davies, e recebeu atenção internacional por sua TedGlobal Talk de 2007 sobre fractais africanos. A palestra é um resumo da pesquisa que ele fez para um livro homônimo, publicado em 1999, no qual ele defende que o desenho fractal está historicamente muito mais presente no continente africano do que em outras áreas. Na sua visão, as idéias matemáticas estão necessariamente conectadas a uma compreensão cultural do mundo, então a presença de fractais em várias sociedades africanas estaria relacionada a crenças religiosas, a modos particulares de pensar sobre o tempo e os ciclos de vida. Essas sociedades teriam visões de mundo diferentes das culturas em que a geometria euclidiana teve um papel muito mais profundo e a geometria fractal é um fenômeno novo, como o mundo ocidental.

Devemos lembrar o quão chocante e difícil foram a formalização e o desenvolvimento da geometria não euclidiana durante a Europa do século XIX. De acordo com o filósofo da ciência Michael Friedman, apesar do amplo reconhecimento do papel de Kant como fundador da filosofia moderna e da história da ciência, os desenvolvimentos da matemática durante o século XIX, especialmente a geometria, tornaram obsoleta a abordagem kantiana original, por ser diretamente baseada na física newtoniana. Kant é particularmente reverenciado por separar a ciência da religião, se Newton era um homem altamente cristão, para Kant o que importa é a Razão Absoluta. A geometria teve um papel especial na epistemologia de Kant e, uma vez que suas premissas foram questionadas, uma vez que os axiomas de Euclides não eram mais uma verdade lógica incontestável, filósofos e matemáticos ficaram obcecados com a busca de um terreno sólido sobre o qual a ciência pudesse florescer (exemplos notórios são Bertrand Russell e Ernst Cassirer). Uma ótima referência para entender o que as novas geometrias representavam é o curto romance ‘Flatland’, no qual um quadrado tenta descrever para seus pares em um mundo bidimensional como é uma realidade tridimensional e, em teoria, como muitas outras dimensões poderiam existir: os habitantes de duas dimensões ficam terrivelmente indignadas e o quadrado é preso perpetuamente. Tais questionamentos foram essenciais para o desenvolvimento da teoria da relatividade de Einstein.

Imagens do livro “African Fractals” de Ron Eglash
Imagens do livro de Eglash mostrando o tradicional assentamento de Ba-ila no sul da Zâmbia. Clara estrutura fractal.
O livro de Eglash comentando a estrutura da cruz etíope
Eglash comentando a expansão urbana da cidade de Cairo

Eglash mergulha em história intelectual, traçando a recepção do sistema de adivinhação binária e recursiva de Ifa e de Bamana na Europa através dos alquimistas, cujas práticas foram estudadas por Leibniz, possivelmente influenciando sua pesquisa matemática. Ou como o famoso conjunto de George Cantor se parece muito com um capitel do Egito Antigo e, considerando que um parente próximo de Cantor era egiptólogo, é possível que o teórico pudesse ter acesso a imagens do capitel. Recriar histórias de influências conceituais é um trabalho muito complicado, mas uma coisa deve ficar clara: à medida que o conhecimento mundial se tornava acessível aos impérios, isso significava que certos grupos de pessoas, como acadêmicos das principais universidades, podiam inspirar-se em todo tipo de fontes, enquanto o mesmo não acontece com as colônias. Como Claudia Zaslavsky explica em seu livro seminal “África conta: número e padrão na cultura africana”, de 1973, a compreensão dos sistemas matemáticos locais se tornou essencial para metrópoles empregarem e cobrarem impostos sobre suas administrações coloniais. Portanto, muito material técnico sobre estes sistemas foi disponibilizado na Europa do século XIX.

Conjunto de Cantor e o capitel de coluna egípcia.
Livro de Eglash: Sistemas de premonição binários e sua tradução na Europa através da “geomancia”

Lendo o trabalho de Gerdes, de Eglash e de alguns outros pesquisadores, somos levados à conclusão de que o estudo de tais técnicas tradicionais poderia ser relevante para o debate científico atual. Basta lembrar que o origami foi apenas recentemente levado a sério para o desenvolvimento tecnológico avançado. A abordagem de Gerdes conecta o artesanato tradicional à ciência contemporânea, ele se interessava por boas soluções de design e tentava entender todo o processo de fazer algo, da matéria-prima ao produto final. Isso não está tão distante de outras tendências atuais em design, arte e tecnologia. O movimento maker, por exemplo, que é um movimento DIY (quer dizer, faça você mesmo) orientado para a tecnologia, combina a cultura hacker e de código aberto com as artes e ofícios tradicionais, do metal e madeira à costura e qualquer técnica que se encaixe melhor em um projeto. Uma das pessoas que faz um trabalho inovador sobre esse assunto é Harshit Agrawal e seu projeto Traditional Cad Tools:

Atualmente, estamos vendo um crescimento no movimento maker digital, impulsionado por máquinas de fabricação digital como impressoras 3D. Estas estão democratizando a manufatura, no entanto, um ponto a ser observado é que todas as ferramentas de software CAD (design auxiliado por computador) para projetar objetos para fabricação digital foram desenvolvidas em um contexto industrial. Isso significa inerentemente que essas ferramentas suportam operações como extrusão, rotação, etc., mas não operações tradicionais, como técnicas de tecelagem (enrolamento, entrelaçamento etc.) para cestaria, por exemplo. Portanto, a linguagem do design digital carece de uma representação das diversas tradições de criação e estas não estão acessíveis para as pessoas projetarem com. — Harshit Agrawal (tradução livre da autora)

A referência histórica comum aos evangelistas da fabricação digital (como Neil Gershenfeld, da FabAcademy e FabLabs, ou o historiador Mario Carpo) não são os fractais africanos nem os padrões encontrados em todo o mundo, mas o Renascimento italiano. A Renascença é o período histórico mais estudado pelos historiadores da arte desde a formalização desse campo acadêmico e agora parece manter uma atração semelhante sobre o mundo das novas mídias. Gershenfeld defende o Renascimento como o modelo de uma organização social em que a colaboração entre diferentes campos do conhecimento é realmente incentivada.

A perspectiva linear, o método preferido da Renascença para representação visual, realmente foi um divisor de águas. Um dos ensaios mais famosos da história da arte, “Perspectiva como forma simbólica”, publicado em 1927 por Erwin Panofsky, considera esse método a expressão mais clara de uma profunda transformação em direção à compreensão sobre o espaço e a visão humana, portanto sobre como percebemos a realidade e o lugar do ser humano no mundo. Panofsky argumentou que a perspectiva linear se baseava na compreensão do espaço físico de uma forma objetificada, mensurável, dentro de uma noção de espaço contínuo e homogêneo. Uma pintura usando esse método de representação apresentaria todos os seus objetos de seguindo uma lógica rígida de proporção constante dentro de um espaço que recuava para um (em alguns casos mais de um) ponto de fuga definido. Portanto, tornou-se possível fazer reconstruções precisas de uma cena ou edifícios usando imagens bidimensionais como referências.

A perspectiva linear estava relacionada a uma visão racionalista do mundo, na qual o indivíduo, o observador, está no centro. Esse argumento é importante porque destaca como métodos e conceitos artísticos / representacionais / matemáticos podem ser agentes formadores de grandes mudanças na maneira como lidamos com a realidade.

Piero Della Francesca, Flagelação — Piero é conhecido não apenas como um excelente pintor, mas também como um matemático dedicado. Ele foi o primeiro a publicar um tratado exclusivamente sobre perspectiva linear, cobrindo aritmética, álgebra e geometria.

Para entender tal ideia, a pesquisa liderada por Philipp H. Lepenies em seu livro “Arte, Política e Desenvolvimento. Como a perspectiva linear moldou as políticas no mundo ocidental” é particularmente relevante, fazendo constantemente um paralelo sobre o ponto de fuga da perspectiva linear com a idéia de um entendimento direcional da história e do progresso, como se houvesse apenas um objetivo (e principalmente um caminho) a ser seguido por toda a humanidade. Lepenies destaca a influência da perspectiva linear no desenvolvimento do Iluminismo e até na atual política internacional, especialmente as noções de ajuda financeira internacional e desenvolvimento econômico. Outro argumento relevante é o de Mario Carpo, que defende que, desde a perspectiva linear, apenas o design assistido por computador e a revolução digital conseguiram trazer uma contribuição realmente original aos nossos métodos de representação e possibilidades de design; afinal os modernistas ainda desenhavam com esquadros e compassos, o desenho técnico bidimensional teve uma melhoria contínua desde o século XV, mas não mais uma mudança de paradigma.

Se durante o Renascimento a matemática e a arte estavam profundamente interconectadas, à medida que a revolução científica se desenrolava no Ocidente, a matemática se tornava um campo muito mais abstrato, sem um método fácil de representação. A especialização também desempenhou um papel e as artes estavam ansiosas por defender sua autonomia e especificidade como campo do conhecimento. Pintores e arquitetos também se tornaram mais distantes entre si. Mario Carpo argumenta que o cálculo de Newton criou belas curvas, no entanto, fazer curvas tridimensionais sólidas ainda era principalmente um processo artesanal, contando com ferramentas como o spline (usado principalmente em barcos). Quando Viollet-Le-Duc, um proeminente arquiteto do século XIX, procurou os fundamentos teóricos de seu campo, ficou muito mais interessado nas ciências da vida do que na nova matemática baseada em cálculo diferencial. A história dos métodos representacionais matemáticos que mudaram essa situação é um pouco longa para este texto, mas vale a pena destacar o desenvolvimento de vetores durante o século XIX, as curvas de Bézier na década de 1960, o Design Assistido por Computador, o desenvolvimento de softwares de desenho e, finalmente, a Fabricação Digital, capaz de fazer curvas tridimensionais extremamente precisas.

Como Panofsky tentou deixar claro, uma mudança nos métodos representacionais tem um impacto muito mais amplo do que se poderia supor inicialmente. Mario Carpo faz uma longa explicação sobre a importância do Paradigma Albertiano, que afirma que a verdadeira obra de arte não é o edifício, mas o projeto, o desenho. Segundo o pesquisador, essa ideia foi realmente difícil de implementar durante a era renascentista, pois os trabalhadores tinham muito mais autonomia e contribuíam criativamente para a construção geral. No entanto, tal paradigma estabeleceu a tendência para a arquitetura, as artes e o sistema de trabalho da revolução industrial: se o trabalho artístico original estiver todo incorporado no desenho do projeto, as pessoas que o executam se tornam completamente desconectadas do ato de criação. O mesmo projeto pode ser recriado em qualquer outro lugar, o contexto pouco importa. A autoria é reverenciada, mas restrita a alguns indivíduos destacados. O design se torna uma atividade por si só.
Mesmo quando a pintura e a arquitetura se afastaram dos estudos matemáticos, a tendência de destacar o criador individual, em vez do coletivo, apenas aumentou desde o Renascimento.

Capa do livro de Ron Eglash sobre Fractais africanos.

Uma abordagem muito diferente para criação e geometria é descrita por Ron Eglash. Na capa de seu livro, como mostrado na imagem acima, há um tecido, criado por um artista / artesão em uma sessão. As pessoas continuamente lhe servem café para que ele possa cumprir sua tarefa, as formas se tornam menores à medida que a energia do artista se torna mais intensa, mas também exausta. A geometria está diretamente conectada a um estado de ser e o criador é o artista, embora seja preciso sempre lembrar que o conceito ‘artista’ tem uma conotação, mercado e expectativas sociais muito diferentes em cada contexto cultural. Outro exemplo curioso é a casa Nankani, na qual o espaço que uma pessoa pode ocupar aumenta de acordo com as fases da vida.

As casas dos Nankani são séries fractais de cilindros. Aqui vemos apenas um composto, um cilindro de cilindros que fica menor à medida que você gira no sentido anti-horário ao redor do pátio central. Nesta vila, sua vida segue a arquitetura. Seu primeiro rito de passagem é do ventre da mãe até a sala de parto. Seu próximo passo é rastejar para o pátio. O seu próximo é do pátio para a vila como um todo e, finalmente, da vila para o mundo. — Site da CSDT

A antropologia é particularmente importante para entender nossos próprios símbolos culturais. Pode parecer mais fácil olhar para grupos que não estão incorporados na lógica de produção de capital industrial e financeiro, grupos que podemos identificar como ‘o outro’ e ver as correlações entre símbolos e organização social. Muitas vezes, um exercício relevante é fazer análises semelhantes sobre nós mesmos, tentando entender qual sistema de valores seguimos, de onde eles vêm e se são compatíveis com um futuro em que desejamos viver (como poderíamos ter uma organização social melhor em nossa era digital?). Ou podemos tentar entender a complexidade de viver em sociedades multiculturais, onde a noção de etnia se torna terrivelmente difícil de definir. Considerando a multiculturalidade das grandes metrópoles, a visão de que grupos como os Nankani são 'o outro' revela o quanto bebemos da noção da história linear, oficializada. Compreender a não linearidade e as múltiplas redes de influências da História é essencial para entendermos como símbolos, conceitos são criados, transformados/ adaptados para cada contexto. Pesquisas mais recentes sobre a dívida da perspectiva linear com a ciência ótica árabe são parte dos inúmeros exemplos dos caminhos surpreendentes da história, do que o encontro de diferentes visões de mundo pode criar. Além disso, ter referências culturais amplas pode nos dar uma ideia de quais caminhos alternativos poderíamos criar.

O que é universal e o que deve ser local, em termos de conhecimentos e práticas compartilhadas? Com o desenvolvimento atual da economia global, os lugares se tornam mais semelhantes, embora nem sempre de uma maneira vantajosa para a maioria dos que não concentram a riqueza. O artigo de Ole Skovsmose e Renuka Vithal de 1997, “O fim da inocência: uma crítica à ‘etnomatemática”, explica a Etnomatemática como uma resposta das ex-colônias ao eurocentrismo na educação matemática, enquanto os métodos educacionais europeus / americanos estavam se tornando dominantes em todo o mundo após a Segunda Guerra Mundial, seguindo um movimento maciço de industrialização e sua necessidade de mão-de-obra especializada. Semelhante ao que Paulus Gerdes argumentou, os autores apontam que esses métodos muitas vezes não eram adaptados aos contextos culturais locais e às práticas educacionais já existentes. No entanto, embora reconheçam a importância do campo de pesquisa, Skovsmose e Vithal criticam a Etnomatemática usando como exemplo o caso da África do Sul, explicando que um foco excessivo nas culturas ou etnias locais poderia levar a um tipo de ‘apartheid’ educacional, no qual as escolas ensinam os alunos de forma diferente, de acordo com sua raça. Pode-se ver facilmente como isso pode se tornar problemático. Em vez de combater problemas de desigualdade estrutural, uma abordagem ingênua sobre a etnomatemática ou política de identidade pode acabar reforçando os estereótipos e desigualdades raciais.

Uma visão unidirecional, um ponto de fuga que todos seguimos, nem mais a matemática ocidental aceita tais noções. A relatividade e a teoria quântica retratam uma noção ambivalente de espaço e tempo muito mais complexa do que a ciência que apoiava a perspectiva linear. Se arte e matemática nem sempre estiveram profundamente entrelaçadas, na era da onipresença do computador, entender a lógica da máquina é cada dia mais importante. Atualmente, a arte algorítmica compreende uma ampla variedade de práticas, desde padrões generativos, design assistido por computador, aprendizado de máquina ou qualquer software de edição de imagens. Semelhante ao processo descrito no último parágrafo sobre os métodos educacionais de matemática, as novas ferramentas de criação e compartilhamento de imagens também tendem a contribuir para uma tendência de homogeneização. Felizmente, temos acesso a diversas referências culturais, mesmo que ainda seja necessário o esforço de construir mais bancos de dados culturais digitais e de democratizar esses conceitos e ferramentas. Como os bancos de dados culturais devem ser criados e compartilhados? Como mais pessoas podem participar ativamente desse processo?

A história da perspectiva linear é um exemplo muito claro das relações entre métodos representacionais, organização social e estruturas de poder. O mesmo acontece com a história do povo Nankani e dos desenhos da ‘sona’, se olharmos mais profundamente para eles. Constatar que a matemática é necessariamente simbólica de modo algum deve ser interpretado como uma negação da importância da lógica formal. Os métodos científicos podem sempre ser aperfeiçoados, mas suas contribuições são essenciais para a tradução e legitimação de conhecimentos a nível inter culturais. As referências históricas trazidas neste texto são relevantes para nos lembrar o que Panofsky já argumentava em relação a perspectiva linear: que nosso entendimento do mundo é mediado por formas simbólicas, que mudanças de paradigmas nas técnicas e nos modos de conhecer tem impactos muito além do que se poderia imaginar num primeiro momento.

Observar a história do mundo sempre pode ser uma fonte de inspiração para imaginar novas utopias.

Vanessa Rosa & Wenqi Li Experimentos de etnocomputação (horário do dia) — 2018 — Vídeo Mapeamento de padrões de ‘sona’ sobre pintura inspirada no livro de Vredeman de Vries (1527–1606) sobre perspectiva linear.
Vanessa Rosa & Wenqi LiExperimentos de etnocomputação (período noturno) — 2018 — Mapeamento em vídeo de padrões de ‘sona’ sobre pintura inspirada no livro Vredeman de Vries (1527–1606) sobre perspectiva linear.

--

--

Vanessa Rosa
Vanessa Rosa

Written by Vanessa Rosa

va2rosa.com. I'm a weird combination of extremely rational with extremely intense/impulsive. Sometimes I manage to find balance.

Responses (1)